"O Indizível" - Entrevistas Performativas

" O Indizível: Entrevistas performativas" é uma série de 4 entrevistas performativas em que artistas queer convidados partilham, reflectem e incorporam as suas experiências em torno da violência sistémica.

11/5/20246 min ler

Foram abordados 4 temáticas diferentes: homofobia; PTSD envolvendo um crime de ódio com base no género; violência sexual na infância e capacitismo.

" O Indizível: Entrevistas performativas" foi financiado por DISTANZEN Solo | Dachverband Tanz Deutschland e NEUSTARTKULTUR.

Entrevista Performativa n1 - "Vergonha Referencial" com João Cidade (ele/dele) - Artista Queer

Abstr. “Vergonha Referencial”

Ideias retiradas da entrevista de João:

- A falta de referências e modelos LGBTQ+ durante o crescimento.

- O processo de formação identitária através daqueles que nos são próximos, mas com os quais existimos em oposição.

- O ambiente de secretismo em torno da nossa própria identidade.

- Experienciar a identidade como um alvo social; ser estigmatizado como inerentemente negativo e errado; implicações na vida adulta.

Reflexão: A vergonha não é uma emoção biológica, como o medo ou a raiva. Ao invés, é uma construção social, algo que nos é causado, com implicações muito mais complicadas quando experienciada repetidamente. A repetição e a normalização são o que aprofunda e prolonga o trauma da homofobia.

O trauma é o que faz com que o sentimento de vergonha sobreviva e persista dentro de nós, muito depois de termos abandonado o ambiente em que a vergonha foi infligida. Afastar-se de ambientes opressivos e encontrar comunidades de apoio e validação é fundamental para um desenvolvimento saudável da identidade. No entanto, é extremamente difícil alcançar a sanação e encontrar o nosso lugar nessas comunidades, sem antes compreender e confrontar a realidade traumatica e os seus efeitos a longo prazo.

Entrevista Performativa n2 - "Dualidade Traumatica" com Olympia Bukakkis (elu/delu) - Artista Interdisciplinar

Abstr. “Dualidade traumática”

Ideias retiradas da entrevista de Olympia:

- Como a PTSD (Perturbação de Stress Pós-Traumático) impede a estabilidade e a integridade do sentido do eu;

- O estigma em torno do PTSD e a falta de conhecimento público sobre o mesmo;

- O medo de sermos abandonados pelas pessoas que nos são próximas quando sofremos de uma perturbação psicológica que carece de aceitação e consciência social;

- A dualidade que emerge nas nossas personalidades ao compartimentarmos/escondermos os sintomas de PTSD.

Reflexão: (Esta reflexão é específica para indivíduos cujo PTSD foi desenvolvido a partir de traumas relacionados com abuso físico e psicológico interpessoal)

O PTSD afecta profundamente o sentido do eu. Muito depois de se ter distanciado do incidente traumático, o corpo continua a revisitar o trauma através de gatilhos psicologicos. Gatilhos psicológicos, são todo e qualquer estimulo que nos recorde da experiência traumática (cheiros, sons, lugares, aparências, etc). Quando um gatilho psicologico se desencadeia, o cérebro reage como se o trauma estivesse novamente a acontecer, activando a sua resposta de "imobilização, luta ou fuga" (freeze, fight or flight response). No caso de pessoas queer, isso leva-as a ocultar a sua identidade cada vez que se sentem em perigo, regredindo nos seus processos de emancipação. É imperativo recuperar as nossas identidades de experiências envolvem violência queerforbica física e psicológica. É importante relembrar-mos que não são as identidades de pessoas queer que atraem a violencia e o trauma, mas sim a cultura e sociedade predominates, que permitem e em alguns casos, celebram essa violência.

Entrevista Performativa n3 - "Vinculo traumático infântil" com Rachael Mauney (elus/elus) - Performer e Coreografe

Abstr. “Dualidade traumática”

Ideias retiradas da entrevista de Ren:

- O abuso sexual na infância e a perpetuação do vínculo traumático

- Como o agressor mantém o controlo sobre o corpo traumatizado muito depois de o abuso ter terminado - Como crescer num ambiente onde o abuso é normalizado perpetua esse ambiente na idade adulta

Reflexão: Recriação de relações abusivas na idade adulta como consequência de violência sexual na infância.

Frequentemente, predadores sexuais ilibam-se dos seus crimes ao convencerem as crianças de merecedoras desse abuso. As crianças são induzidas a acreditar que os seus maus comportamentos e maus traços de personalidade são a causa do abuso. São convencidas de que o agressor, neste caso a figura parental, é a única pessoa capaz de as amar, apesar de todos os seus defeitos.

Estas crianças crescem com a dupla narrativa de que não merecem ser amadas e de que o amor conduz à violência. Quando adultas, não têm modelos e ferramentas saudáveis para criar laços afectivos com outras pessoas. Continuam a envolver-se em relações românticas que seguem o modelo das que tiveram com o(s) seu(s) progenitor(es) abusivo(s). Como todas as pessoas, procuram pelos os seus primeiros modelos afetivos nas suas relações adultas, o que, neste caso, conduz a mais trauma. Consequentemente, o adulto traumatizado continua a procurar o amor parental que nunca recebeu.

O luto pela ausência de amor de um pai, e/ou de uma mãe, é uma das coisas mais difíceis de superar, ainda mais quando associado a violência sexual. “Se os meus pais foram capazes de destruir a minha integridade desta forma, o que farão os outros?"

A ligação entre amor e abuso, afeto e violência começa a desintegrar-se quando os sobreviventes compreendem que o abuso nunca foi responsabilidade deles, nem estava conectado com a sua falta de valor, com a sua identidade, ou com o facto de não serem merecedores de amor. A vinculação negativa aos agressores começa a desvanecer-se quando os sobreviventes reconhecem que a culpa dos maus-tratos sofridos foi inteiramente dos seus pais. Esta compreensão criará espaço afetivo onde antes havia um vazio emocional - espaço para o amor-próprio, para que outres se aproximem, para que surjam e se formem relações mais saudáveis.

Entrevista Performativa n4 - "Deficiência Invisível" com Anajara (ela/elu) - Artista Interdisciplinar

Abstr. “Deficiência invisível”

Ideias retiradas da entrevista de Anajara:

- Como ter deficiências invisíveis nos coloca em desvantagem numa sociedade capitalista/colonial.

- O capacitismo e a auto-dúvida internalizados, com origem na constante descredibilização dos sintomas fisico e psicológicos de pessoas com deficiências invisíveis (gaslighting).

- Sentir-se diminuído pelo facto do teu trabalho e talento estarem associados a padrões capitalistas/coloniais de proficiência e valor.

Reflexão:

Capacitismo: “discriminação contra pessoas com deficiência. A discriminação pode ser intencional ou não intencional e baseia-se na crença de que existe uma forma correta de os corpos e as mentes funcionarem, sendo que qualquer pessoa que se desvie dessa forma é inferior.” #1

Gaslighting: “um tipo específico de manipulação em que o manipulador conduz a outra pessoa (ou grupo de pessoas) a questionar a sua própria realidade, memória ou percepções”. #2

Há muito a aprender sobre a relação das pessoas com o poder e a autoridade na forma como as deficiências visíveis e invisíveis são experienciadas na nossa sociedade. Desde muito cedo, as escolas, os governos e, em muitos casos, as nossas figuras parentais, ensinam-nos a obedecer a padrões capacitistas de trabalho, classe e produção ("para a nossa própria sobrevivência") em vez de os desafiarmos.

Ensinam-nos a descredibilizar a nossa dor (física e emocional) e a sentir vergonha das nossas limitações quando confrontados com padrões de produção competitivos coloniais. Interiorizamos a opressão capitalista de forma tão profunda e desde tão cedo que, no final, já não precisamos de ninguém para nos oprimir - tornamo-nos o nosso próprio opressor e, consequentemente, o opressor dos outros. Uma vez que o patriarcado e o capitalismo se cristalizam dentro de nós, tornamo-nos seus agentes, e aqueles que os desafiam, nossos inimigos.

A luta contra o capacitismo é, antes de mais, individual e interna.